Mistérios da cidade do Porto - Como passava na muralha o antiquíssimo rio da Vila?

Como passava na muralha o antiquíssimo rio da Vila?
Rio da Vila igual a "Canallem Maiorum"


Um habitual leitor destas crónicas escreveu a colocar uma questão pertinente acerca do medievo rio da Vila, aqui tantas vezes referido. Diz ele na sua missiva "…uma estrutura defensiva (refere-se à muralha fernandina) como esta não se coadunava com a passagem de um rio, mesmo com as dimensões das do rio da Vila, a passar a céu aberto… é natural, pois, que tivesse sido encanado ou encoberto por alguma estrutura que evitasse a vulnerabilidade da muralha. A partir de que momento deixou (o rio) de correr a céu aberto (junto da Porta de Carros, que ficava diante da igreja dos Congregados)?"

Antes de tudo o mais, uma explicação o rio da Vila formava- -se no sítio que é hoje a Praça de Almeida Garrett com as águas de dois mananciais.

Um nascia por alturas da actual Praça do Marquês de Pombal, descia a céu aberto através da Quinta do Laranjal (actual Avenida dos Aliados), passava pelo antiquíssimo Casal de Pai Novais, depois Campo das Hortas (a Praça da Liberdade dos nossos dias), alimentando hortas, alfobres e lavadouros.

O outro tinha a sua origem nas elevações da Fontinha, descia por Fradelos, Bolhão, onde se lhe juntavam as água de um terceiro ribeiro; percorria o terreno que é na actualidade a Rua de Sá da Bandeira e juntava-se ao primeiro num local que podemos indicar como ficando mesmo em frente da estação de S. Bento, formando a partir daí o célebre rio da Vila, onde a cidade depositava todas as imundícies, transformando-o numa verdadeiro foco infeccioso. É evidente que, durante muito tempo, as águas daqueles referidos ribeiros correram a céu aberto, sendo aproveitadas para rega de hortas e abastecimento de lavadouros.

Uma dessas hortas, segundo refere Alberto Pimentel na sua obra "A Praça Nova", era denominada a Horta do Hilário e pertencia, desde o tempo do conde D. Henrique, a uma alta figura do clero com aquele nome.

O mesmo autor alude, ainda, à existência, no século XVII, de um lavadouro chamado da Maria Manuela, que também era abastecido pelo caudal do ribeiro que vinha das bandas do Marquês.
Houve, porém, um dia em que aqueles ribeiros tiveram que ser encanados. Importante era saber quando isso aconteceu para podermos responder cabalmente à pergunta que o leitor, acima referido, nos colocou.

A resposta, no entanto, não é fácil devido à escassez de documentos que nos indiquem com segurança o tempo e as circunstâncias em que isso aconteceu. Mas alguma coisa se sabe.

A cidade do Porto prosperou muito, especialmente devido ao incremento comercial com o estrangeiro, ao longo dos séculos XIII e XIV. A criação de uma Bolsa de Mercadores, no reinado de D. Dinis, é o mais elucidativo testemunho desse desenvolvimento. A Bolsa começou por funcionar como uma espécie de seguro marítimo destinado a cobrir os riscos de naufrágio, incêndio ou acção da pirataria então muito activo nos mares do Norte.

Em 1336, D. Afonso IV, filho de D. Dinis, deu inicio à construção da chamada muralha gótica que, por ter terminado durante o reinado de D. Fernando, ficou conhecida por muralha fernandina.
A obra arrastou-se por um longo período de trinta e oito anos. Deve ter sido durante o tempo que duraram os trabalhos da construção do muro novo que se realizou o encanamento dos ribeiros que se juntavam no largo fronteiro ao antigo mosteiro da monjas beneditinas de S. Bento da Ave-Maria.

Sabe-se, com efeito, que em 1409, no tempo de D. João I, as águas dos dois ribeiros já corriam encanadas. Refere-o o historiador Horácio Marçal num trabalho sobre o rio da Vila.

Quando afirma que uma das designações que o rio da Vila teve foi, também, a de "rio de Carros", por atravessar o sítio em que na muralha da cidade se abrira esta porta, o referido autor informa que tomou aquele designação "por correr no subsolo da dita porta…". Assim deve ter sido porque não era possível, não é pelo menos imaginável, como muito bem salienta o nosso leitor, que se construísse uma obra da envergadura da muralha fernandina com dois ribeiros correndo a céu aberto junto dos alicerces e perto de uma das mais importantes portas de entrada e saída do burgo.

Em 1927, na Praça da Liberdade, na parte mais próxima da Praça de Almeida Garrett, realizaram-se importantes obras destinadas à instalação de um enorme colector. Esses trabalhos puseram a descoberto inúmeras galerias subterrâneas, algumas por onde passariam os tais ribeiros, que durante algum tempo ficaram a céu aberto expostas à curiosidade pública. Sobre essas galerias teceram-se as mais imaginosas considerações atribuindo-lhes, segundo uma curiosa crónica do tempo, "funções clandestinas de intercomunicações para os numerosos conventos de frades e de freiras que por ali existiam…". Como é imaginosa a fantasia popular…

O rio da Vila aparece indicado no documento de doação de D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, do burgo portucalense ao bispo D. Hugo. É o célebre "Canallem Maiorum", o que, desde logo, deixa pressupor a existência de um canal menor. Seria este o rio Frio, que nascia em terras do Couto de Cedofeita, nas proximidades da actual Rua da Torrinha, passava pelo sítio onde hoje está o Hospital de Santo António, abastecia a Fonte das Virtudes, corria ao longo do areal da praia de Miragaia e desaguava no Douro no local onde se construiu o edifício da Alfândega nova.
Voltemos, porém, ao rio da Vila. Esta não foi a única designação que teve, conforme já foi referido na peça ao lado. Primitivamente era conhecido pelo rio da Cividade, por passar perto deste sítio emblemático do velho burgo.
Em 1409 era o rio de Carros por correr no subsolo desta porta aberta na muralha fernandina e que ficava em frente à igreja dos Congregados.
Mas com a designação de rio da Vila é que passou à história.
Em 1763 a parte deste rio próxima da Ribeira foi coberta com a construção da Rua de S. João.
E em 1875 com a abertura da Rua de Mouzinho da Silveira foi encanado na parte que ainda estava a descoberto.

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