Durante o predomínio dos árabes, foi este Castelo habitado por Abencadão Alboazar, a qual, ousadamente, conseguiu apossar-se de D. Gaia mulher de D. Ramiro I, de Leão., segundo o referido pelo conde D. Pedro, filho bastardo do Rei D. Dinis.
E como este sucesso é cantado e recontado, tradicionalmente, pelas habitantes da antiga CALE, entendemos que ele deve ser bem conhecido e rememorado por todos os Gaienses.
D. Ramiro, ao saber que sua esposa estava encerrada no Castelo de Gaia, resolveu vir libertá-la.
E, neste propósito, embarcou num porto das Astúrias, com destina ao Douro, acompanhado de seu filho D. Ordonho e por muitos vassalos.Desembarcou na praia de Afurada, recomendou, a seguir, ao seu filho e aos seus soldados que lhe acudissem, quando ele fizesse toques com a sua buzina. E, depois, disfarçando-se em peregrino, foi para uma fonte*, que havia perto do Castelo.
Decorrido pouco tempo chegou à fonte uma moura, que disse estar ao serviço da Rainha D. Gaia.
D. Ramiro, então, pediu-lhe que a deixasse beber do jarro que a mesma trazia e, sem esta dar fé, deitou-Ihe dentro um anel.
D. Gaia, ao deitar a água numa bacia, viu cair o anel, ao lago o reconheceu como de seu marido.Aflita, chamou a moura e disse-lhe que fizesse por encontrar o peregrino a quem dera de beber e a levasse ao Castelo.
D. Ramiro, diante de sua mulher, propôs-lhe para que o acompanhasse; porém, ela, toda arrogante, perguntou-lhe:
- D. Ramiro, quem te disse que eu estava aqui?
O Rei Leonês, meigo e amorosamente, respondeu-lhe:
- O teu amor.
D. Gaia, já em tom colérico e imperioso, replicaria:
- Pois vais morrer!
D. Ramiro ficou sucumbido perante a atitude de sua esposa; mas cobrando ânimo., respondeu-lhe altivamente:
- A minha morte, para ti, é uma pequena maravilha.
D. Gaia, então., chamou dois gigantes mouros e mandou encerrar seu esposo, num quarto, com a recomendação de ninguém lhe dar de comer, nem de beber; porém, a escrava moura, ao ouvir a determinação da Rainha, e condoendo-se do infortúnio de D. Ramiro, conseguiu levar-lhe alguns alimentos.
Estava D. Ramiro, na prisão, a sofrer o seu desespero pela dura traição de sua esposa, quando soube que chegara da caça o régulo Abencadão, a que lhe foi comunicado por um mouro que o vigiava.
D. Gaia, depois de Alboazar ter jantado, perguntou-Ihe:
- Meu querido! Se tu tivesses aqui D. Ramiro, a que lhe fazias?
- Matava-o – respondeu.
Então. D. Gaia, deitando um amoroso olhar ao régulo, mandou buscar D. Ramiro.
Abencadão, surpreendido com a presença do Rei Leonês no seu Castelo, perguntou-lhe com a mais autoritária arrogância árabe:
- D. Ramiro, como ousaste vir aqui?
O soberano leonês, rodeado por dois mouros, conteve a sua indignação à altivez como se lhe dirigia o régulo.E, em tom submisso, respondeu-lhe:
- Vim ver minha mulher, a quem raptaste, quando tu havias feito tréguas comigo; e, por isso, de ti nada me guardava.
Abencadão, depois de lançar os seus olhares sabre D. Gaia, disse-lhe:- D. Ramiro, vais morrer; mas atendendo a que és um rei, quero que me digas que morte me darias, se eu ousasse entrar nos teus Paços sem tua autorização.
O Rei Leonês, lívido, e prevendo que a sua vida estava por horas, respondeu obtemperadamente:
- Eu te daria um capão assado, e urna regueifa para comeres, e o vinho que quisesses beber.Depois abriria as portas do Castelo para entrar toda a gente para te ver morrer; mas antes de seres morto, far-te-ia subir a um padrão, onde havias de tocar urna buzina, como esta, que trago comigo, até não teres mais fôlego.
Abencadão, ao ouvir tão extraordinária sentença, falou com D. Gaia e, cheio de arrogância, retorquiu-lhe:
- Vais ter a mesma morte que me darias.
E, neste propósito, ordenou que dessem de comer e beber a D. Ramiro e mandou erguer, na praça do Castelo, o padrão.
D. Ramiro, angustiado, pouco ou nada comeu, nem bebeu.
No seu ânimo, porém, renascia urna repulsa contra a sua mulher que, ali, mostrava todo o seu prazer em vê-lo nas garras do mouro, que ela tanto demonstrava amar.
No entretanto as portas do castelo foram abertas e franqueadas a toda a gente, para ver tocar, na buzina, e depois, morrer, o rei D. Ramiro I, de Leão.
Quando Abencadão, com a Rainha, tinham escolhido um melhor local para verem D. Ramiro tocar na buzina até o fôlego se lhe acabar, foi o Rei Leonês solto e chamado para subir ao padrão.
Porém, D. Ramiro ao ver que sua mulher estava junto do régulo mouro, disse para este:
- O padrão é baixo, pedia-te que, antes, me deixasses subir ao cimo do teu Castelo, para que toda a gente me visse e, também, ouvisse os toques da minha buzina.
Abencadão, depois de obter o assentimento de D. Gaia, permitiu, então, que D. Ramiro subisse ao alto do Castelo.
O filho de D. Ramiro e os seus soldados estavam, naquela ocasião, próximos do Castelo; e, assim que o Rei Leonês deu os primeiros toques, acorreram com tal ímpeto que, breve, dominaram toda a guarnição mourisca que rodeava Abencadão.
O régulo mouro, surpreso, tentou resistir, mas caiu inerte, para sempre, – trespassado por urna espada. D. Ramiro, sentindo-se vitorioso, desceu à praça do Castelo e, com a sua espada cooperou no morticínio dos mouros ali presentes, inclusive os próprios menores.
E – conta o conde D. Pedro –, não ficou em essa Vila de Gaia, pedra sobre pedra, que tudo não fosse em terra.
Almeida Garrett, no seu poema Miragaia, informa que D. Ramiro depois de mandar sua mulher e as servas para o areal fronteiro, mandou deitar o fogo ao Castelo; e, a D. Gaia, deu-lhe o fim trágico, contado nas seguintes quadras:
Perguntas-me o que miro! Traidor rei, que hei-de mirar?As torres daquele alcácer Que ainda estão a fumegar.
Pois mira, Gaia. E dizendo Da espada foi arrancar;Mira, Gaia, que esses olhos Não terão mais que mirar!
Foi-lhe a cabeça dum talhoE, com o pé, sem olhar, Borda fora empunha o corpo... O Douro, que os leve ao mar!
Do estranho caso ainda agora Memória está a durar. Gaia, é o nome do castelo Que, ali, Gaia, fez queimar
Ainda, hoje, está dizendo,Na tradição popular,Que o nome tem Miragaia,Daquele fatal mirar.
«Dos cinco aos dez anos – diz o autor de «Frei Luís de Sousa» – vivi, com meus pais, numa quinta chamada O Castelo, e que se diz tirar esse nome das ruínas que ali jazem do Castelo.
«Na ermida da quinta se venerava urna antiquíssima imagem de Nossa Senhora com a mesma invocação do Castelo.«Muitas vezes brinquei na fonte do Rei Ramiro; e tenho ideia de me haver custado caro, outra vez, o eu imitar com urna gaita da feira de S. Miguel os toques da buzina de Sua Majestade Leonesa, empoleirando-me, corno ele, num resto da muralha velha do Castelo.«Algumas cópias são textualmente conservadas da tradição popular e se contam no meio da história rezada, ainda hoje repetidas por velhas e barbeiros do lugar.«...É a mais antiga reminiscência da poesia popular que me ficou da infância, porque eu abri os olhos à primeira luz da razão nos próprios sítios em que se passam as principais cenas deste romance: Miragaia.»
Além deste notável depoimento, há, mais, sobre a aventura de D. Ramiro, o poema que, sob o título O Castelo de Gaia, publicou, em 1601, João Vaz e também o poemeto feito pela insigne Bernarda Ferreira de Lacerda, na língua de Cervantes, publicado no volume Espanha Libertada, em 1618.Nestes poemas, é a figura de D. Ramiro bem exaltada e o seu feito engrandecido.
Em 28 de Dezembro de 1850, a Câmara de Gaia, tendo elaborado o seu escudo de armas, resolveu enviá-lo, acompanhado de uma representação à rainha D. Maria II, em que indicava:«...e para cor local da legenda popular, sairá do centro desta coroa um guerreiro armado, embocando uma buzina, simbolizando o rei Ramiro, quando libertou sua esposa D. Gaia, roubada pelo régulo Alboazar.»Verifica-se, pois, que tanto por parte de insignes poetas, como pelos vereadores municipais de há um século, continua bem firme a aventura de D. Ramiro, feita nas terras de Gaia.E, assim, o indómito rei D. Ramiro figurou no brasão de armas de Gaia, em visível lugar de honra, até à publicação da portaria governamental n.º 7883, de 8 de Setembro de 1934, que determinou o uso de um novo brasão, elaborado sob as regras heráldicas.Todavia, neste novo escudo municipal de Gaia, vemos que, D. Ramiro, novamente, tomou o seu lugar, apresentando-se ricamente vestido com um gibão vermelho, a tocar uma buzina de oiro, no cimo do Castelo, como que a dizer a todos os filhos de Gaia:- Gaienses! Há cerca de seis séculos, depois que D. João I, no ano de 1384, sujeitou a vossa querida terra à fronteira cidade, os filhos do burgo portuense, talvez despeitados por possuirdes um grandioso Castelo romano, vieram destruiu-lo.Todavia, o vosso querido castelo figurou, galhardamente, no brasão do vosso município até ao momento em que foi substituído pelo que, agora, tendes em vigor.E, como vós neste novo brasão da vossa terra, me confiaste, à minha guarda, o castelo que nele figura, dou-vos a minha palavra de rei que hei-de velar pela perpetuidade deste monumento, por ele representar aquele que os romanos ergueram na vossa antiga CALE.Tenho, como vós, um grande desejo deste célebre monumento ser bem revivido, não só para honra vossa, como por tanto me lembrar que nele estive, e onde toquei, na minha buzina, para salvar-me das garras do mouro Alboazar.Grato à nova buzina de oiro, que me oferecestes, eu, como sempre, continuarei a tocar com todo o poder dos meus pulmões:
Oh! Antiquíssima Cale, Deste o nome a Portugal!
* Esta fonte já não existe. Foi incorporada, com o terreno que lhe era anexo, na propriedade da firma Guimarães & Cª, hà cerca de seis lustros.Em 15 de Janeiro de 1384, o mosteiro de Pedroso arrendou a Gonçalo Anes uma casa que estava a par da fonte do Rei Ramiro. Pergaminho n.º 151 do Arquivo da Universidade de Coimbra.
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